31 de mai. de 2014

Desnudança

Ela estava ali, no quarto de vestir que cheirava a cigarro e amargura, olhando sua imagem nua refletida no espelho. Uma alma boa a diria que precisava de umas férias, uma viagem pra descansar, conhecer coisas novas e, quem sabe, pessoas novas. Mas não havia ninguém que lhe pudesse dizer qualquer coisa. Era ela e o cigarro, um cinzeiro, o espelho a sua frente, o relógio acima deste e centenas de pares de roupas a sua volta. 

Olhava para aquelas roupas,precisava de algo para vestir. O relógio já batia 17 horas e a missa dominical começava às 19. Há 20 anos ela comparecia assiduamente a todas as celebrações; nunca, em hipótese alguma, faltara. Porém, nenhuma daquelas roupas lhe pareciam dignas de serem usadas, não que fossem de má qualidade, pelo contrário, eram belíssimas; porém, cada uma trazia a fragrância de um ex-alguém-que-já-lhe-fizera-feliz-mas-resolveu-que-deveria-partir. 

Atormentada com aquele dilema, decidiu ligar o rádio. Talvez, alguma melodia lhe trouxesse um pouco da felicidade que um dia vivera. No rádio tocava Benito di Paula,

Minha dor vai passando esquecida 
Vou vivendo essa vida do jeito que ela me levar 
Vamos falar de mulher, da morena e dinheiro 
Do batuque do surdo e até do pandeiro 
Mas não fale da vida, que você não sabe o que eu já passei

O tic-tac do relógio soava ao fundo daquela música, e ela pode perceber naquilo a sua metáfora existencial: o tic-tac na existência de uma grande melodia, que não seria percebido, a não ser que se discriminasse um pouco de atenção para sua insignificância. 

Mas o tempo passava e ela continuava ali, nua, as roupas a sua volta, o cigarro já apagado no cinzeiro, o espelho que mostrava, através das marcas físicas, tudo aquilo que já havia sofrido emocionalmente. 

Resolveu pegar um vestido azul marinho. Não, foi usando ele que o último homem da sua vida a deixara para viajar o mundo com uma dinamarquesa que ela mesma havia hospedado em sua casa. 

Viu então uma blusa de um rosa quase branco, de estampa florida e delicada. Lembrou-se que foi usando aquela blusa, no consultório de seu médico, que recebera a notícia que sofrera um aborto espontâneo na oitava semana de gestação daquele que seria seu único filho.

Pensou que poderia ir vestida de uma maneira mais formal, com seu blazer cinza, como ia para seu emprego. Aliás, emprego do qual pedira demissão por não suportar mais o assédio do seu chefe, na sua insistência em levá-la para cama diversas vezes.

O relógio já mostrava quase 18 horas. Ela então saiu do quarto de vestir, passando pela sua suíte que tinha um forte cheiro de incenso, que se confundia com o cheiro do cigarro que sempre a acompanhava. Desceu as escadas, passou pela porta da cozinha, que estava devidamente organizada; diferente da sala, onde papéis do livro de autoajuda que estava escrevendo espalhavam-se pelo chão.

Chegara a porta da casa. Lembrou que estava nua. Pegou as chaves da casa, abriu a porta e saiu.

No quarto de vestir, o rádio tocava:

No caminho da rua sambei meia hora em cada esquina
 Entrei em boteco, fiz doze amigos do peito e da pinga 
Eu bebi, ri, subi em cima da mesa dizendo "seu moço 
Traz mais uma gelada que a nega aqui hoje teve alforria!"


Guilherme Rodrigues Santos

2 comentários: