23 de nov. de 2013

Eu comi a vida

Se Deus existe, ele provavelmente se fez comível. Não precisa compreender, caro leitor, esse é o mistério da fé. Porém, explanarei  a seguir.

Há em toda história da humanidade palavra tão excepcional quanto comer? Não, não há.

Comer é de tal forma excepcional que dispensa qualquer transitividade. Você me dirá que estou equivocado, afinal, comer é verbo transitivo direto, certo? Não. Eu comi e fim. O que eu comi? Ah, caro leitor, isto é curiosidade e a curiosidade comeu o gato.

Eu amo comer. Amo porque o Comer é. A vida só existe porque o Comer existe.

Eu comi a vida. Comi deliciosamente, mastiguei, saboreei cada pedaço dela e sinto seu gosto na ponta da língua ao escrever aqui.

A vida tem gosto de cheese-bacon e coca-cola: é saborosa, prazerosa, nos vicia nessa bomba calórica de querer viver e sugar tudo de si. Mas a vida também me oferece pedaços amargos, podres, e na minha ânsia de comer, ponho-me a mastigar. Engoli amarguras, triturei rancores e bebi ódio. Meu estômago revirando, numa luta consigo próprio para não aceitar aquilo. Digeri.

Mudei o cardápio, pedi o prato principal: degustar pessoas. Comer o homem é esplêndido. Sentir sabores acre e adocicados, compreender a receita de cada um, a medida dos ingredientes que lhes compõem. Mas comer o homem em todas as suas migalhas exige dedicação, pois engoli-lo é uma tarefa árdua. Comer humanos é, sorrateira e candidamente, comer a si mesmo e se entregar como alimento ao outro.

E é por isso que lhe digo, leitor-irmão, comer e se fazer comível exige fé.


Guilherme Rodrigues Santos

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